O tradicional e o novo na cultura dos povos indígenas como possibilidades concretas de sobrevivência
- Alberto Nasiasene

- 3 de jun. de 2016
- 8 min de leitura

Enganam-se todos aqueles que pensam que os índios ficaram, todos, presos ao passado e a aspectos tradicionais de sua cultura material dos quais não podem se desprender, de livre e espontânea vontade, sem deixar de ser índios. O que faz de um povo um fenômeno antropológico e sociológico distinto dos outros povos não é apenas sua raça (ou aparência física), muito menos seu estilo de vida baseado em tecnologias consideradas "atrasadas" e "primitivas" diante da sociedade industrial de cunho ocidental capitalista. O que faz de um povo uma etnia autônoma das demais é sua identidade cultural mais essencial (identidade que não se pode medir, evidentemente, com nenhuma régua ou balança estabelecida pela ciência). É o ethos cultural de um povo que faz com que, a despeito de todas as mudanças histórico-sociais, econômicas, políticas e choques culturais diversos, ele se autodefina como povo com identidade própria. Isto se dá tanto por meio do sentir-se povo diferente dos demais, quanto por meio de elementos básicos de sua cultura (preservados a despeito de todas as mudanças aparentes) que se expressa na maneira de viver, de comer, de se vestir, de crer, de construir, em padrões de estética em padrões de relacionamentos sociais, em costumes arraigados de mil maneiras no cotidiano etc.

A estratégia da classe dominante luso brasileira de dissolver as etnias indígenas brasileiras sobreviventes ao genocídio, às doenças, à escravização e ao roubo de suas terras num caldo cultural indistinto, nas camadas mais abaixo da pirâmide social excludente da sociedade capitalista que criaram fracassou redondamente. Os povos indígenas sabiamente recusaram-se a se integrar, como seres inferiores entre os inferiores, numa sociedade que não lhes reservava uma posição digna e respeitosa, mantendo sua personalidade cultural e sua dignidade física. Mesmo com todo o massacre e truculências, ao longo da história de cinco séculos de colonização, os povos indígenas lutaram até o século XX, embrenhando-se nas florestas, fugindo ao contato com a fonte de desgraças que era a tal sociedade "civilizada." Seus direitos jurídicos alcançados, principalmente depois da constituição de 1988, não foram uma dádiva da sociedade dominante, mas o resultado de séculos de lutas por sobrevivência no território que era todo deles. Balela esta história de progresso e desenvolvimento truculento ao atropelo dos povos e em prol de lucros astronômicos de uma minoria! Nenhuma catequese conseguiu convencer os índios de que eles não eram seres humanos em dignidade plena e em igualdade de condições e direitos para com os "civilizados" cristãos. Cristãos uma ova! Se fossem coerentes com seus próprios valores cristãos evangélicos, não teriam massacrado, escravizado e tomado as terras destes povos em nome de Deus (aliás, o próprio povo judeu, de Jesus Cristo e apóstolos, também foi massacrado, ao longo de séculos, por estes que diziam ser herdeiros do evangelho e é um exemplo de que um povo, mesmo espalhado geograficamente, misturando-se aqui e ali, perseguido, oprimido etc. ainda continua a se auto-identificar como povo específico, a despeito de todas as tentativas de assimilação forçadas e a despeito de até terem perdido seu território original no ano 70 d.C.).

Assim como disse, anteriormente, que era necessário, cada vez mais, a formação de mais e mais economistas que se dediquem à economia criativa, nesta Terceira Revolução Industrial, digo agora que é também cada vez mais necessário a formação de mais e mais economistas de origem indígena (para além de antropólogos, sociólogos, historiadores, psicólogos, biólogos, engenheiros, arquitetos, médicos, artistas e educadores indígenas) tanto para contrabalançar a visão eurocêntrica dos demais economistas sem um mínimo de formação antropológica, quanto para que os povos indígenas possam se inserir economicamente mais enfaticamente como parte da federação brasileira que deve ser respeitada, mas preservando sua identidade cultural. Os povos indígenas têm sua própria contribuição econômica a dar nesta nova fase da Revolução Industrial, preservando sua cultura e o meio ambiente em que vivem, de maneira que nós, enquanto sociedade maior, nunca o conseguimos (temos muito o que aprender com eles, sim, em várias áreas da vida em sociedade). A riqueza cultural e ambiental preservada por estes povos precisa ser melhor valorizada por toda a sociedade brasileira não índia, porque esta é uma das grandes marcas que nos distingue diante do mundo, querendo ou não (afinal, o que faz de nós luso brasileiros é a miscigenação cultural que aconteceu em nossas terras desde 1500, mesmo que alguns de nós nem tenham gota alguma de sangue indígena ou africano). Devemos dissipar completamente a visão estereotipada e preconceituosa com a qual ainda se vê os povos indígenas brasileiros, nos descolonizando internamente, nas dimensões estéticas, nas dimensões intelectuais, nas dimensões éticas etc. Somos o que somos, bem ou mal, porque temos sangue indígenas e africano misturado em nossas veias. Gerações de intelectuais, desde o advento do romantismo literário no século XIX, já lutaram antes de nós por assumirmos, sem complexos de culpa, nossa condição miscigenada de povo sul americano.

Os dois extremos possíveis de se pensar os povos indígenas (digo, pensar os povos indígenas no ponto de vista nosso, que não somos índios) devem ser superados: os índios congelados num tempo imóvel ("primitivo") e o índio genérico deculturado, "assimilado" forçadamente, relegado aos extratos mais periféricos de nossa sociedade em situação de mendicância, prostituição e alcoolismo. Em meados do século XX era a partir desta dicotomia ou sobre a qual muitos antropólogos pensavam os problemas dos povos indígenas brasileiros, mesmo dentro do SPI (Serviço de Proteção ao Índio, fundado pelo Marechal Cândido Mariano Rondon, que era um positivista e acreditava no esquema evolucionista de August Comte). Não que esta dicotomia fosse um grave problema do pensamento antropológico de um Darcy Ribeiro, mas, ao contrário, era decorrente dos horizontes históricos conjunturais da época do desenvolvimentismo juscelinista, por exemplo (que via muito naturalmente, com o passar do tempo, que os povos indígenas fossem todos, mesmo os da Amazônia, tragados pela fronteira agrícola e urbana que estava se desenhando com a interiorização acelerada do desenvolvimento do país). Naquele contexto, ou se lutava, como um D. Quixote, contra os moinhos "modernizantes" (do ponto de vista de uma classe dominante egressa do escravismo colonial predador e exportador; mas, do ponto de vista dos povos indígenas, moinhos da destruição e genocídio), ou se aceitava, impotentemente, o que parecia ser "inevitável:" o fim dos povos indígenas (até mesmo fisicamente, pela destruição genocida). Mesmo depois de quase quinhentos anos de colonização, as perspectivas históricas de meados do século XX eram sombrias para os povos indígenas sobreviventes até então. Foi neste contexto que se criou o Parque do Xingu (e ele só pode ser compreendido a partir de toda esta problemática contextual, sem que projetemos no passado valores e realidades que são atuais).

Com os olhos postos na realidade histórica de hoje, seria muito fácil condenar a visão do jovem Darcy Ribeiro na década de 1950 (a de que os índios seriam inevitavelmente tragados pela "civilização"), mas isto não seria justo com a visão deste grande antropólogo que foi um ativo indigenista, dentro do SPI, que lutou ativamente pela preservação física e cultural dos povos indígenas (dentro do contexto histórico e com todas as armas que lhe cabiam nas muitas batalhas que enfrentou). A falsa previsão feita por Darcy, em um livro como Os Índios e a Civilização, escrito na década de 1960 pós exílio, era mais um lamento e um apelo desesperado pela causa indígena do que uma previsão profética propriamente dita (ou melhor, era uma profecia que tinha em si mesma um detonador inverso que foi construído para que ela não ocorresse de fato: o detonador do terrorismo psicológico que visava assustar só para chamar atenção para uma tragédia com o intuito de que ela não ocorresse como estava se inclinando a ocorrer). O próprio Darcy, como senador, antes de morrer no fim da década de 1990, pôde presenciar ativamente, como um dos artífices políticos, a revivescência dos povos indígenas, especialmente depois da Constituição de 1988 (em que ele também participou ativamente).Somos hoje uma nova geração que tem o dever de continuar a luta em comum agora não só pela preservação física, cultural e territorial dos povos indígenas, mas também pela consolidação de novas formas de co-existência entre a etnia luso brasileira maior e as etnias indígenas menores. Ainda falta muito o que realizar, mas já começamos a partir de um patamar de vitórias parciais, alcançadas na luta histórica, muito maior do que Darcy Ribeiro e os demais antropólogos de meados do século XX podiam sonhar. Hoje temos a parceria ativa dos próprios povos indígenas (através de suas inúmeras lideranças étnicas) mas, do nosso lado, devemos nos aliar decididamente não só com os povos indígenas que já alcançaram direitos básicos inimagináveis em meados do século passado, mas com todos os setores da sociedade que podem ter sensibilidade para entender as potencialidades que estão reservadas para o nosso país quando os povos indígenas puderem, gradualmente, de mil maneiras, participar também, de seu modo, da criação de uma federação muito mais rica econômica, politica, cultural e socialmente (assumindo suas múltiplas heranças culturais, especialmente as dos povos originários, como herança comum).

Nós é que somos imigrantes, diante de todos os povos indígenas originários. Isto quer dizer que é uma vergonha que nos orgulhemos da contribuição dos imigrantes italianos, japoneses, polacos, árabes, espanhóis, portugueses e sequer consideremos como contribuições culturais enriquecedoras a forte presença étnica dos índios naquilo que é a cultura luso brasileira. Somos o que somos, porque temos sangue índio em nossas veias e porque herdamos deles (mesmo os que são descendentes de italianos, alemães e japoneses por parte de pai e mãe) todo um arcabouço sociocultural e econômico que está aí bem presente em várias dimensões de nossa sociedade, como na língua (o português falado no Brasil tem mais de 60 000 vocábulos indígenas em seu léxico), na culinária, nos modos, nos trajes, nos objetos culturais, nas crenças etc.

Felizmente, os povos indígenas, hoje, em plena era digital da Terceira Revolução Industrial, estão aqui para nos provar que não se transformaram em meras peças de museu de um holocausto intencionalmente genocida ocorrido em terras brasileiras (havia mais de 1000 povos indígenas quando Cabral pisou esta terra e hoje não passam de 200; portanto, 800 povos foram exterminados em nossa terra, um dos processos genocidas em grande escala ocorrido no mundo ocidental). O papel da educação em tudo isto é crucial, porque é inadmissível que hoje ainda se veja, em pleno século XXI, escolas e professores que comemoram o dia do índio com estereótipos ridículos como os relativos aos índios da América do Norte, desconhecendo completamente os nossos índios concretos e alguns de seus traços culturais mais marcantes. Não é admissível não só porque há uma lei federal que obriga o ensino da cultura e da história dos povos indígenas (assim como dos povos africanos), mas porque já há um considerável material didático e paradidático disponível para educadores de todos os níveis do sistema de ensino brasileiro. Escrevo aqui, neste site, também para ajudar a difundir a cultura indígena entre meus próprios alunos (afinal, alguns deles, tem lá a cara de indiozinhos e indiazinhas e nem sabem direito quem são). Quero continuar a escrever sobre a história dos povos indígenas, mas fico muito feliz em ver que já estão aparecendo bons historiadores indígenas (como Kaka Werá Jecupé - A Terra dos Mil Povos) que contam a história a partir de um outro ponto de vista, o ponto de vista dos povos indígenas sobre nossa etnia maior. Em outras postagens, irei falar sobre este ponto de vista que é complementar e necessário para que tenhamos uma historiografia mais rica e mais plena.
Alberto Nasiasene Jaguariúna, 30 de maio de 2013
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